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COMO CONSTRUIR UMA EMPRESA QUE (REALMENTE) VALORIZA A INTEGRIDADE

 Durante décadas, exigiu-se dos líderes que se concentrassem em um único aspecto: os resultados financeiros. Mas, agora, estamos em meio a uma revolução ética. Os líderes são cada vez mais responsabilizados por comportamentos inadequados, e as empresas são pressionadas por funcionários, governos e clientes a reconhecer os problemas e adotar uma abordagem multi-stakeholder que atenda tanto a objetivos sociais como a demandas dos investidores.

Códigos de ética genéricos que apenas pedem aos funcionários que assinalem em uma caixa de verificação a confirmação de terem lido o material e treinamentos de ética terceirizados online, podem ser o suficiente para as empresas respeitarem a lei, mas não surtem quase nenhum efeito real. Os funcionários veem isso como um inconveniente que não podem evitar.

Os líderes empresariais precisam fazer mais que isso. Passei mais de trinta anos de minha carreira como advogado estudando questões no ambiente de trabalho, como diretor de Confiança e Segurança da eBay, e como conselheiro geral em empresas como Chegg e Airbnb. Passei por muitos escritórios em que parecia que os departamentos jurídico e de RH apenas reagiam a um problema após o outro. Ao longo dos anos, desenvolvi as seis práticas a seguir para ajudar os líderes a serem proativos, a inspirarem os funcionários e estarem sempre à frente da revolução ética.

Lidere pelo exemplo.

A liderança deve adotar a integridade de forma aberta e direta. O CEO e outros membros da equipe de liderança são modelos de destaque que definem o tom ético da empresa. Se eles usam muitos atalhos, não seguem as regras ou ignoram posturas inadequadas dos profissionais de alto desempenho, dão a todos a permissão implícita para agirem da mesma maneira. Os líderes devem falar aberta e diretamente sobre integridade, incorporá-la como parte da cultura e estar prontos para fazer a “coisa certa”, mesmo que essa postura pareça prejudicar os negócios em curto prazo.

Em uma crise, o medo se instala e tudo o que um líder faz é amplificado. Um “momento de integridade” pode acontecer a qualquer momento, e um líder deve estar comprometido com os princípios corretos ou, caso contrário, pode perder a confiança de uma equipe para sempre. Analisemos o exemplo de Kevin Kelly, CEO da Emerald Packaging. Durante uma reunião nos primeiros dias da pandemia, um funcionário perguntou: “E se eu for o único qualificado a operar determinada máquina e ela enguiçar?” Naquele momento, a liderança de Kevin estava em jogo, e ele lidou com a questão perfeitamente. “Fique em casa”, disse ele, e pediu ao funcionário que repetisse suas palavras. Todos riram, mas todos entenderam o recado: para ele, a saúde dos funcionários estava acima das necessidades imediatas da empresa.

Os CEOs devem ter cuidado especial ao estabelecer metas ambiciosas e usar uma linguagem poderosa para motivar os funcionários. Objetivos audaciosos podem causar medo (o que acontece se eu não cumprir o combinado?) e podem ser interpretados como uma permissão implícita para o comportamento inapropriado. Metas irreais desempenharam um papel fundamental no lamentável escândalo de emissões de poluentes da Volkswagen, por exemplo. Mais recentemente, um escândalo eclodiu quando seis funcionários da eBay foram acusados criminalmente por seu suposto envolvimento em uma campanha agressiva de perseguição cibernética contra os críticos da empresa. De acordo com um depoimento divulgado pelos promotores, um executivo da eBay disse à equipe para lidar com os críticos fazendo “Tudo. O que for. Necessário.”

Elabore seu próprio código de ética.

Muitas empresas tratam seu código como mera formalidade jurídica. Eles baixam o código de outra empresa e colocam seu logotipo no cabeçalho, ou delegam a tarefa a advogados que, compreensivelmente, criam um documento destinado a proteger a empresa de responsabilidades legais. Não dependa de algo que outra pessoa redigiu – não se pode terceirizar a integridade.Seu código de ética deve refletir a opinião de um recorte amplo de funcionários e se basear nos valores principais da empresa, juntamente com as normas específicas de seu setor, da localização geográfica e da cultura.

É melhor evitar se perder em muitas regras, mas existem cerca de dez problemas recorrentes. Uma orientação clara sobre como lidar com eles é importante para que os indivíduos não criem seu próprio código conforme os problemas se apresentem.Nós elaboramos o código de ética da Airbnb com a contribuição de funcionários do mundo todo e equipes diversas, entre as quais finanças, marketing, dados e experiência do cliente.

Intitulado “Integrity Belongs Here,” é baseado em nosso valor central de promover o pertencimento do ser humano através das viagens. Ele discute questões como, por exemplo, se é apropriado aceitar presentes de fornecedores terceirizados ou anfitriões agradecidos. Também analisamos conflitos de interesses em relação a ocupações secundárias, porque nossos funcionários são frequentemente solicitados a fornecer algum tipo de consultoria.

Fale sobre os problemas.

Não basta simplesmente cuidar dos negócios e supor que a integridade ocorrerá de forma natural. Os líderes devem abordar sua importância de maneira aberta, explícita e constante. A orientação é um bom ponto de partida. Destaque a importância de ter o CEO ou outro líder em todas as reuniões de orientação e reserve uma hora para conversar pessoalmente com os novos funcionários sobre os valores e a ética da empresa, usando exemplos reais de sua trajetória profissional. Esse tipo de discussão presencial autêntica de um líder define limites e causa uma impressão duradoura.

Eu costumo apresentar a palestra de orientação na Airbnb toda semana. Trata-se de uma sessão interativa de 75 minutos em que examino cenários éticos específicos que os funcionários já enfrentaram. O feedback que recebo é extremamente positivo. Falamos abertamente sobre questões espinhosas, como a quantidade de álcool que se deve servir (e consumir) em um evento de trabalho.

Também abordamos a questão do namoro entre colegas e o planejamento de viagens de equipes de forma que todos se sintam à vontade. No início deste ano, uma funcionária me enviou uma carta dizendo que saiu do emprego anterior porque seu gerente insistia em lhe fazer propostas de casamento. Por receio de denunciar a pessoa, ela decidiu se candidatar a uma vaga na Airbnb. “Se eu tivesse recebido essa mensagem de uma liderança na empresa em que trabalhava antes, teria feito a denúncia”, ela escreveu após a sessão de orientação. “Estou feliz por trabalhar agora em uma empresa que realmente se preocupa com isso.”

Tenha a certeza de que os funcionários sabem denunciar más condutas.

Muitas empresas enterram o sistema de denúncia em um link nos confins da intranet da empresa e não falam abertamente sobre como funciona o processo de investigação. Esse silêncio gera suspeitas e desconfianças, além de criar um ambiente em que os funcionários não se sentem confortáveis em utilizar o recurso.

As empresas que desejam uma cultura de integridade devem tornar o processo de denúncia de quaisquer problemas – principalmente as violações do código de ética – fácil, direto e claro. É preciso criar uma cultura em que não haja o receio de se abordar questões éticas, que seja capaz de receber más notícias e em que exista o apoio aos funcionários que apontem situações problemáticas.

Certa vez, um funcionário de segurança de TI me procurou para dizer que eu havia deixado meu computador aberto sem supervisão por cinco minutos enquanto ia ao banheiro. Em vez de me mostrar contrariado, eu o recompensei por ter tido a coragem de chamar a atenção de um líder sênior – eu – por negligenciar uma prática padrão de segurança. Um ano depois, ele ainda cita aquele reconhecimento como o ponto alto de sua carreira na empresa.

Ouço líderes de algumas empresas dizerem com orgulho que seu canal de denúncias de problemas éticos tem poucos ou nenhum registro. Isso pode ser um sinal de problema. Tente o seguinte:

Reúna-se com funcionários escolhidos ao acaso em uma sala e peça para lhe mostrarem como registrar uma denúncia de um problema ético. Tome nota de quanto tempo eles levam para chegar ao lugar certo. Ou faça uma rápida pesquisa anônima e pergunte se os funcionários se sentem à vontade em relatar violações e se eles acham que a empresa segue, na prática, seu discurso ético. Explore novas ferramentas. Por exemplo, a empresa britânica Vault Platform desenvolveu um aplicativo para celular que permite que os funcionários comuniquem, de forma segura e confidencial, problemas de conduta inadequada que sofreram ou presenciaram. A ferramenta possui um recurso especial pelo qual um funcionário com receio de fazer uma denúncia sozinho pode enviar a queixa apenas se outro funcionário também apresentar uma reclamação contra a mesma pessoa de forma independente.

Exponha as consequências.

As violações éticas devem ser investigadas e, quando comprovadas, as consequências justas e cabíveis devem ser aplicadas. Líderes e funcionários de alto desempenho não devem possuir nenhum tipo de imunidade. Mesmo em empresas com um protocolo robusto de denúncia e apuração, os funcionários podem duvidar que as queixas serão investigadas a fundo e suspeitar que nada acontecerá de fato. Esse tipo de cultura corrói a confiança e desencoraja os funcionários a relatarem algum desvio de conduta.Uma maneira de combater esse obstáculo é trazer transparência para o processo. Empresas como Airbnb e Cisco conversam com os funcionários sobre o que acontece quando uma queixa é registrada e divulgam frequentemente “relatórios de transparência” que, respeitando a privacidade, fornecem aos funcionários dados sobre quantidade e tipo de denúncias, quantas delas são investigadas e confirmadas, assim como as medidas adotadas. Fornecer tais janelas de transparência em um processo íntegro pode aumentar a confiabilidade.

Lembre-se de que a repetição é importante.

A integridade não pode ser tratada com um e-mail anual ou algumas páginas de um manual do funcionário ignorado. Como me disse o ex-comissário da NBA David Stern, é como um comercial de televisão – você não pode veiculá-lo uma vez e esperar que a ideia se fixe. A repetição é importante.

Seja criativo; não se apoie em vídeos terceirizados e genéricos para fazer a diferença. Desafie alguém de sua equipe a fazer vídeos engraçados sobre situações que envolvam a conduta e peça aos líderes que participem. Na Airbnb, gravamos vídeos curtos (de três a cinco minutos) com o celular, explorando situações como um recrutador fazendo perguntas antiéticas em uma entrevista, uma equipe planejando uma festança de fim de ano e um funcionário roubando pacotes de café para abastecer sua segunda empresa. Não é obrigatório assisti-los, mas eles são divertidos o suficiente para que entre um terço e metade dos funcionários os veja a cada mês, e os líderes e gerentes sugiram tópicos e peçam para participar deles.

Se gravar vídeos não faz muito o seu gênero, experimente outra coisa que se encaixe na sua cultura. Inclua um “minuto de integridade” como parte de todas as reuniões da empresa ou, como fizemos no Chegg, faça um teste no estilo de um game show em que os líderes precisam responder a perguntas difíceis sobre seu código de ética; ou, então, crie um programa de “Embaixadores da Ética” como os da L’Oréal e Airbnb, no qual voluntários de toda a empresa recebem treinamento especial e dão conselhos sobre ética a outros funcionários.

Faça questão de incorporar a ética como uma das dimensões de suas decisões de negócios. Além de perguntar “Quanto custa?” e “Qual é nossa margem de lucro?”, pergunte sobre o impacto da cadeia de suprimentos de um produto no mundo, ou como o produto afeta a saúde dos funcionários ou a mudança climática. O essencial é construir um ambiente em que seja considerado algo positivo falar sobre ética, um programa pensado para criar um ambiente de integridade por meio da repetição, ou o que chamo de “insistir no mesmo assunto”. Adote um ambiente em que os valores estejam em primeiro plano, tanto em palavras, quanto em ações.

A integridade é uma poderosa faca de dois gumes para as empresas de hoje. Qualquer omissão pode desencadear um levante entre os funcionários, a reação negativa de clientes ou investigações por parte de órgãos governamentais. Mas, quando tratada da maneira certa, a integridade pode se transformar em um superpoder capaz de inspirar os funcionários e repercutir nos consumidores atentos aos valores do momento atual. E, sim, a integridade é contagiosa. Crie um ambiente que seja amplamente aceito pela liderança e entrelaçado no tecido da cultura da empresa, e veja isso se transformar em um de seus maiores trunfos.


Robert Chesnut é autor do livro  “Intentional integrity: how smart companies can lead an ethical revolution and why that’s good for all of us”. Chestnut dedicou toda a sua carreira profissional a questões relacionadas à integridade no ambiente de trabalho e no mercado global, primeiro como promotor federal, atuando em investigações de espionagem, como o caso Aldrich Ames, depois como fundador do sistema de confiança e segurança de mercado do eBay e, mais recentemente, como conselheiro geral e diretor de ética da Airbnb. 

Fonte:<https://hbrbr.com.br/como-construir-uma-empresa-que-realmente-valoriza-a-integridade/>