
Quando o outro vira espelho do nosso vazio: opressão afetiva, projeções e a coragem de amar de verdade
“A opressão começa quando o desejo do outro é reduzido a um espelho do nosso próprio vazio.” — Raoul Vaneigem
Vivemos em uma cultura que nos ensina a buscar o outro como complemento. Crescemos com a ideia de que alguém virá para “nos completar”, como se fôssemos metades esperando por outra metade. Mas e se essa busca escondesse um abismo emocional? E se o problema não for a ausência do outro, mas a presença insuficiente de nós mesmos em nossa própria vida?
Essa é a provocação que lança Raoul Vaneigem, um dos pensadores menos “pop” da tradição situacionista, mas profundamente atual. Em sua visão, as relações se tornam opressoras quando o outro é instrumentalizado para tapar o buraco existencial que se recusa a ser encarado.
A tirania da idealização: quando o outro deixa de ser sujeito
Em muitas relações disfuncionais, o amor é confundido com a necessidade de validação. O outro é convocado a nos provar que somos desejáveis, bons, dignos. Mas essa demanda silenciosa é um fardo pesado: ela transforma o outro em espelho das nossas carências não resolvidas.
O psicólogo britânico Christopher Bollas chama isso de “objeto transformacional”: o uso inconsciente do outro para alterar estados internos que não conseguimos manejar sozinhos. Em vez de construir um espaço de troca, criamos um palco onde o outro encena nossa própria insuficiência.
E quando ele não corresponde ao roteiro? Surgem frustração, controle, manipulação emocional. O amor que deveria libertar, aprisiona.
A psicologia do ciclo: idealização, controle e desvalorização
Do ponto de vista da psicologia comportamental, é possível compreender esse processo como um ciclo de reforço intermitente: momentos de afeto intensos seguidos de rejeição, culpa e angústia. O cérebro se condiciona a esperar recompensas emocionais que nunca chegam de forma estável. Isso gera dependência emocional, ansiedade e um constante estado de vigilância afetiva.
Essa oscilação emocional não é acidental. Em muitos casos, é o resultado de padrões internalizados desde a infância: apego ansioso, esquemas de abandono, crenças centrais de insuficiência. Na terapia do esquema (Young), tais padrões são vistos como “lentes” através das quais interpretamos os vínculos atuais. Amamos com o que aprendemos, não com o que desejamos.
Quando amar é suportar o outro ser outro
Pascal Quignard, pensador eclético da linguagem e do desejo, nos oferece um contraponto delicado: “amar é aceitar que o outro escape.” Em outras palavras, amar é permitir que o outro tenha desejos, vontades e caminhos que não serão controláveis por nós. E isso é profundamente desconfortável para quem ainda está preso à fantasia de completude.
Na terapia comportamental contemporânea, chamamos isso de descentralização do eu: o processo de reconhecer que o outro não existe para preencher o que me falta. É uma prática cognitiva e afetiva de separar minhas expectativas da realidade do outro.
Como terapeutas, muitas vezes ouvimos: “Ele deveria me fazer feliz”. Mas a verdadeira descoberta é que ninguém é responsável por sustentar aquilo que não sabemos cultivar em nós. E isso não é desistir do amor. É libertá-lo da função de remendo psíquico.
Amor não é espelho: é encontro
Em tempos de narciso, talvez o gesto mais revolucionário seja reconhecer o outro como um fim em si mesmo. Judith Butler lembra que somos constituídos na vulnerabilidade do encontro, e não na rigidez das identidades fixas. Amar é um risco ético, um convite à coexistência de dois mundos que nunca serão idênticos.
E é aqui que a saúde mental se entrelaça com a filosofia: só quem se cuida, quem se acolhe, quem se conhece, é capaz de se relacionar sem colonizar o outro com suas faltas. O autoamor não é egoísmo; é responsabilidade afetiva. Não é individualismo; é preparação para estar com.
Cultivar relações saudáveis é um trabalho cotidiano de diferenciar o que é meu, o que é do outro, e o que podemos construir entre. É sair do espelho e entrar no diálogo.
Para refletir (e sentir), com estas 5 provocações:
1. Quando o outro vira espelho do nosso vazio, nasce a opressão relacional.
2. Relações tóxicas não nascem do desrespeito direto, mas da ausência de nós em nós mesmos.
3. O amor vira anestesia da insegurança — e o outro, refém da nossa idealização.
4. Relacionar-se exige descentralizar o eu: enxergar o outro como sujeito, não como função.
5. Amar é suportar que o outro exista — mesmo quando ele não preenche o que falta em você.
“Espelhos não sustentam vínculos. Só o encontro entre presenças é capaz de curar.”
Quantas vezes você projetou suas ausências em quem apenas tentava existir ao seu lado? Quantas vezes você se anulou para caber no papel que o outro esperava?
Talvez o início de qualquer relação verdadeira comece quando ousamos ver o outro como presença real, e não como reflexo.
Se isso ressoou com você, compartilhe. E lembre-se: estar junto não é fusão, é coexistência.
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