
Ichigo-Ichie e a Arte de Estar Presente: A Nova Liderança em Tempos de Distração Digital
Vivemos uma era em que a presença se tornou um luxo. A tecnologia, com todas as suas virtudes, também nos legou um paradoxo silencioso: estamos mais conectados e, ao mesmo tempo, mais ausentes. Em um mundo hiperestimulado, onde a distração se disfarça de produtividade, cultivar presença plena é um dos maiores desafios humanos e, ao mesmo tempo, um dos maiores diferenciais de liderança.
A ideia de que nosso tempo de atenção está em declínio ganhou força após a popularização de uma estatística amplamente difundida: a de que temos um tempo de atenção menor do que o de um peixinho dourado. Essa afirmação, atribuída a um suposto estudo da Microsoft em 2015, carece de base científica sólida e foi desmentida por várias fontes confiáveis, como a BBC e a Fast Company. Neurocientistas como Bruce Morton, da University of Western Ontario, argumentam que o que ocorre é uma redistribuição de foco, não uma redução de capacidade cognitiva.
No entanto, mesmo sem dados definitivos, é inegável que a qualidade da nossa atenção tem sido impactada pelo ambiente digital. Estudos sérios apontam para uma mudança significativa na forma como processamos informações. Segundo o neurocientista Daniel Levitin, o cérebro humano, quando exposto a multitarefas constantes, entra em um ciclo de “atenção fragmentada”, o que aumenta os níveis de cortisol e gera estresse cognitivo.
Essa fragmentação não apenas nos afasta da escuta profunda, mas compromete a qualidade das conexões interpessoais e da liderança consciente. Nesse cenário, retomar o valor da presença torna-se urgente. E é nesse ponto que resgatamos um conceito filosófico e ancestral: Ichigo-Ichie.
Originário da cultura japonesa, o termo “Ichigo-Ichie” pode ser traduzido como “uma vez, uma oportunidade” ou “este momento é único e irrepetível”. Ele foi imortalizado por Yamanoue Sōji, mestre de chá do século XVI, que ensinava seus aprendizes a tratarem cada encontro como se fosse o último. É um convite à consciência plena, à presença autêntica e à valorização do aqui e agora.
Aplicar Ichigo-Ichie no contexto corporativo não é apenas uma escolha estética ou cultural: é um imperativo estratégico. Reuniões se tornaram, muitas vezes, rituais de presenças físicas e ausências mentais. Profissionais conectados ao Wi-Fi, mas desconectados emocionalmente. O verdadeiro líder do futuro é aquele capaz de criar espaços de presença, onde cada pessoa se sinta vista, ouvida e reconhecida.
Para isso, alguns princípios precisam ser resgatados:
1. Clareza de Intenção: Toda reunião deve ter um propósito emocional, não apenas operacional. A pergunta a ser feita é: por que este encontro será lembrado?
2. Roteiros que emocionam: Tal como faziam os anfitriões memoráveis do século XX, como o conde Étienne de Beaumont, é preciso criar uma narrativa para cada encontro. O inesperado, quando bem orquestrado, captura a atenção e envolve.
3. Singularidade: Repetir fórmulas mata a magia. Cada encontro deve ser único. Como na cerimônia do chá, o que importa não é a eficiência, mas a intensidade da experiência.
4. Ecologia da Presença: Desligar celulares não é o suficiente. É preciso criar atmosferas seguras, significativas e conectadas. Isso passa por design de ambientes, liderança emocionalmente inteligente e cultura de escuta.
5. A Educação da Atenção: Como nos ensina Jon Kabat-Zinn, a atenção plena pode ser treinada. Mindfulness, respiração consciente e micropráticas de presença são ferramentas poderosas para a liderança que deseja impactar com profundidade.
Neste mundo que valoriza tanto a velocidade, talvez a verdadeira revolução seja voltar-se para a lentidão qualitativa. Um encontro não é apenas um compromisso na agenda: é uma possibilidade de transformação.
Ichigo-Ichie não é um ritual oriental distante. É uma competência essencial para o líder que deseja humanizar suas relações, fortalecer suas conexões e deixar legados.
Mais do que nunca, ser presente é ser extraordinário.
Referências:
Levitin, Daniel. “The Organized Mind: Thinking Straight in the Age of Information Overload”.
Kabat-Zinn, Jon. “Wherever You Go, There You Are”.
BBC: “Why you probably have more attention span than a goldfish”
Fast Company: “The Myth Of The 8-Second Attention Span”
Yamanoue Sōji, “Yamanoue Sōji Ki” (Registros do Caminho do Chá)
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